Publicamos a seguir a íntegra da homilia proferida por Bento XVI na
Missa do Galo, na noite desta segunda, 24, na Basílica de São Pedro. A tradução
em português é de autoria da Secretaria de Estado do Vaticano.
“Amados irmãos e irmãs!
A beleza deste Evangelho não cessa de tocar o nosso coração: uma beleza
que é esplendor da verdade. Não cessa de nos comover o facto de Deus Se ter
feito menino, para que nós pudéssemos amá-Lo, para que ousássemos amá-Lo, e,
como menino, Se coloca confiadamente nas nossas mãos. Como se dissesse: Sei que
o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a
ti mesmo. Por isso venho a ti como menino, para que Me possas acolher e amar.
Sempre de novo me toca também a palavra do evangelista, dita quase de
fugida, segundo a qual não havia lugar para eles na hospedaria. Inevitavelmente
se põe a questão de saber como reagiria eu, se Maria e José batessem à minha
porta. Haveria lugar para eles? E recordamos então que esta notícia,
aparentemente casual, da falta de lugar na hospedaria que obriga a Sagrada
Família a ir para o estábulo, foi aprofundada e referida na sua essência pelo
evangelista João nestes termos: «Veio para o que era Seu, e os Seus não O
acolheram» (Jo 1, 11).
Deste modo, a grande questão moral sobre o modo como nos comportamos com
os prófugos, os refugiados, os imigrantes ganha um sentido ainda mais
fundamental: Temos verdadeiramente lugar para Deus, quando Ele tenta entrar em
nós? Temos tempo e espaço para Ele? Porventura não é ao próprio Deus que
rejeitamos? Isto começa pelo facto de não termos tempo para Ele. Quanto mais
rapidamente nos podemos mover, quanto mais eficazes se tornam os meios que nos
fazem poupar tempo, tanto menos tempo temos disponível.
E Deus? O que diz respeito a Ele nunca parece uma questão urgente. O
nosso tempo já está completamente preenchido. Mas vejamos o caso ainda mais em
profundidade. Deus tem verdadeiramente um lugar no nosso pensamento? A
metodologia do nosso pensamento está configurada de modo que, no fundo, Ele não
deva existir. Mesmo quando parece bater à porta do nosso pensamento, temos de
arranjar qualquer raciocínio para O afastar; o pensamento, para ser considerado
«sério», deve ser configurado de modo que a «hipótese Deus» se torne supérflua.
E também nos nossos sentimentos e vontade não há espaço para Ele. Queremo-nos a
nós mesmos, queremos as coisas que se conseguem tocar, a felicidade que se pode
experimentar, o sucesso dos nossos projetos pessoais e das nossas intenções.
Estamos completamente «cheios» de nós mesmos, de tal modo que não resta
qualquer espaço para Deus. E por isso não há espaço sequer para os outros, para
as crianças, para os pobres, para os estrangeiros.
A partir duma frase simples como esta sobre o lugar inexistente na
hospedaria, podemos dar-nos conta da grande necessidade que há desta exortação
de São Paulo: «Transformai-vos pela renovação da vossa mente» (Rm 12, 2). Paulo
fala da renovação, da abertura do nosso intelecto (nous); fala, em geral, do
modo como vemos o mundo e a nós mesmos. A conversão, de que temos necessidade,
deve chegar verdadeiramente até às profundezas da nossa relação com a
realidade. Peçamos ao Senhor para que nos tornemos vigilantes quanto à sua
presença, para que ouçamos como Ele bate, de modo suave mas insistente, à porta
do nosso ser e da nossa vontade. Peçamos para que se crie, no nosso íntimo, um
espaço para Ele e possamos, deste modo, reconhecê-Lo também naqueles sob cujas
vestes vem ter conosco: nas crianças, nos doentes e abandonados, nos marginalizados
e pobres deste mundo.
Na narração do Natal, há ainda outro ponto que gostava de refletir
juntamente convosco: o hino de louvor que os anjos juntam à sua mensagem acerca
do entoam depois de anunciar o Salvador recém-nascido: «Glória a Deus nas
alturas, e paz na terra aos homens do seu agrado». Deus é glorioso. Deus é pura
luz, esplendor da verdade e do amor. Ele é bom. É o verdadeiro bem, o bem por
excelência. Os anjos que O rodeiam transmitem, primeiro, a pura e simples
alegria pela percepção da glória de Deus. O seu canto é uma irradiação da
alegria que os inunda. Nas suas palavras, sentimos, por assim dizer, algo dos
sons melodiosos do céu. No canto, não está subjacente qualquer pergunta sobre a
finalidade; há simplesmente o facto de transbordarem da felicidade que deriva
da percepção do puro esplendor da verdade e do amor de Deus. Queremos
deixar-nos tocar por esta alegria: existe a verdade; existe a pura bondade;
existe a luz pura.
Deus é bom; Ele é o poder supremo que está acima de todos os poderes.
Nesta noite, deveremos simplesmente alegrar-nos por este facto, juntamente com
os anjos e os pastores.
E, com a glória de Deus nas alturas, está relacionada a paz na terra
entre os homens. Onde não se dá glória a Deus, onde Ele é esquecido ou até mesmo
negado, também não há paz. Hoje, porém, há correntes generalizadas de
pensamento que afirmam o contrário: as religiões, mormente o monoteísmo, seriam
a causa da violência e das guerras no mundo; primeiro seria preciso libertar a
humanidade das religiões, para se criar então a paz; o monoteísmo, a fé no
único Deus, seria prepotência, causa de intolerância, porque pretenderia,
fundamentado na sua própria natureza, impor-se a todos com a pretensão da
verdade única.
É verdade que, na história, o monoteísmo serviu de pretexto para a
intolerância e a violência. É verdade que uma religião pode adoecer e chegar a
contrapor-se à sua natureza mais profunda, quando o homem pensa que deve ele
mesmo deitar mão à causa de Deus, fazendo assim de Deus uma sua propriedade
privada. Contra estas deturpações do sagrado, devemos estar vigilantes. Se é
incontestável algum mau uso da religião na história, não é verdade que o «não»
a Deus restabeleceria a paz. Se a luz de Deus se apaga, apaga-se também a
dignidade divina do homem. Então, este deixa de ser a imagem de Deus, que
devemos honrar em todos e cada um, no fraco, no estrangeiro, no pobre. Então
deixamos de ser, todos, irmãos e irmãs, filhos do único Pai que, a partir do
Pai, se encontram interligados uns aos outros.
Os tipos de violência arrogante que aparecem então com o homem a
desprezar e a esmagar o homem, vimo-los, em toda a sua crueldade, no século
passado. Só quando a luz de Deus brilha sobre o homem e no homem, só quando
cada homem é querido, conhecido e amado por Deus, só então, por mais miserável
que seja a sua situação, a sua dignidade é inviolável. Na Noite Santa, o
próprio Deus Se fez homem, como anunciara o profeta Isaías: o menino nascido
aqui é «Emmanuel – Deus-conosco» (cf. Is 7, 14). E verdadeiramente, no decurso
de todos estes séculos, não houve apenas casos de mau uso da religião; mas, da
fé no Deus que Se fez homem, nunca cessou de brotar forças de reconciliação e
magnanimidade. Na escuridão do pecado e da violência, esta fé fez entrar um
raio luminoso de paz e bondade que continua a brilhar.
Assim, Cristo é a nossa paz e anunciou a paz àqueles que estavam longe e
àqueles que estavam perto (cf. Ef 2, 14.17). Quanto não deveremos nós
suplicar-Lhe nesta hora! Sim, Senhor, anunciai a paz também hoje a nós, tanto
aos que estão longe como aos que estão perto. Fazei que também hoje das espadas
se forjem foices (cf. Is 2, 4), que, em vez dos armamentos para a guerra,
apareçam ajudas para os enfermos. Iluminai a quantos acreditam que devem
praticar violência em vosso nome, para que aprendam a compreender o absurdo da
violência e a reconhecer o vosso verdadeiro rosto. Ajudai a tornarmo-nos homens
«do vosso agrado»: homens segundo a vossa imagem e, por conseguinte, homens de
paz.
Logo que os anjos se afastaram, os pastores disseram uns para os outros:
Coragem! Vamos até lá, a Belém, e vejamos esta palavra que nos foi mandada (cf.
Lc 2, 15). Os pastores puseram-se apressadamente a caminho para Belém – diz-nos
o evangelista (cf. 2, 16). Uma curiosidade santa os impelia, desejosos de verem
numa manjedoura este menino, de quem o anjo tinha dito que era o Salvador, o
Messias, o Senhor. A grande alegria, de que o próprio anjo falara, apoderara-se
dos seus corações e dava-lhes asas.
Vamos até lá, a Belém: diz-nos hoje a liturgia da Igreja. Transeamus –
lê-se na Bíblia latina – «atravessar», ir até lá, ousar o passo que vai mais
além, que faz a «travessia», saindo dos nossos hábitos de pensamento e de vida
e ultrapassando o mundo meramente material para chegarmos ao essencial, ao
além, rumo àquele Deus que, por sua vez, viera ao lado de cá, para nós.
Queremos pedir ao Senhor que nos dê a capacidade de ultrapassar os nossos
limites, o nosso mundo; que nos ajude a encontrá-Lo, sobretudo no momento em
que Ele mesmo, na Santa Eucaristia, Se coloca nas nossas mãos e no nosso
coração.
Vamos até lá, a Belém! Ao dizermos estas palavras uns aos outros, como
fizeram os pastores, não devemos pensar apenas na grande travessia até junto do
Deus vivo, mas também na cidade concreta de Belém, em todos os lugares onde o
Senhor viveu, trabalhou e sofreu. Rezemos nesta hora pelas pessoas que
atualmente vivem e sofrem lá. Rezemos para que lá haja paz. Rezemos para que
Israelitas e Palestinianos possam conduzir a sua vida na paz do único Deus e na
liberdade. Peçamos também pelos países vizinhos – o Líbano, a Síria, o Iraque,
etc. – para que lá se consolide a paz. Que os cristãos possam conservar a sua
casa naqueles países onde teve origem a nossa fé; que cristãos e muçulmanos
construam, juntos, os seus países na paz de Deus.
Os pastores apressaram-se… Uma curiosidade santa e uma santa alegria os
impelia. No nosso caso, talvez aconteça muito raramente que nos apressemos
pelas coisas de Deus. Hoje, Deus não faz parte das realidades urgentes. As
coisas de Deus – assim o pensamos e dizemos – podem esperar. E todavia Ele é a
realidade mais importante, o Único que, em última análise, é verdadeiramente
importante. Por que motivo não deveríamos também nós ser tomados pela
curiosidade de ver mais de perto e conhecer o que Deus nos disse?
Supliquemos-Lhe para que a curiosidade santa e a santa alegria dos pastores nos
toquem nesta hora também a nós e assim vamos com alegria até lá, a Belém, para
o Senhor que hoje vem de novo para nós. Amém.
Por Rádio Vaticano
Fonte: Arquidiocese de Fortaleza
http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/atualidades/destaques/bento-xvi-onde-deus-e-esquecido-nao-existe-paz/
Nenhum comentário :
Postar um comentário