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TEMA DE FORMAÇÃO 2010/2011 - I
Introdução:
Desde do Concílio Vaticano II e, em especial, a partir do Sínodo sobre a evangelização, de
1974, a incidência da reflexão eclesial tem optado por debruçar-se relevantemente sobre o anúncio
do Evangelho ao homem, abarcando os seus mais diversos aspectos, concluindo-se que a
compreensão da acção evangelizadora da Igreja não depende de uma mera definição conceptual.
Ora a clarificação que se segue quer ajudar a equipa do SDEC, a descortinar, mais facilmente, esta
tarefa da Igreja, no caminho que percorre a nível de cada um dos seus membros – no seguimento de
Cristo –, quer a nível comunitário – no serviço da transmissão da fé, sempre em fidelidade a Deus e
a ao homem.
Após o «Ano Paulino», ficou clara a certeza de que em São Paulo, o que verdadeiramente
domina o seu pensamento, desde a famosa «queda» de Damasco, é o encontro existencial com
Cristo, a identificação total com a Sua pessoa. É este encontro que justifica e dá conteúdo
existencial ao «Evangelho» que ele anuncia, do qual vive e ao qual atribui um quadro semântico
próprio. É desta maneira que a Igreja quer estar no mundo, ao serviço da humanidade, vivendo a
«diaconia» do Evangelho. Daqui percebe-se o porquê da evangelização ser, por um lado, herança e
dom, e, por outro lado, processo, tarefa e responsabilidade de cada cristão perante Deus e perante o
outro homem.
Em suma, a evangelização, encerra em si um desafio claro de levar a que o homem dirija o
seu olhar para o mistério de Cristo, de modo que as suas atitudes humanas e as humanas estruturas
onde vive, encontrem a um confronto com o modelo de humanidade que foi revelado em Jesus
Cristo. Nesta linha, a evangelização tem de superar sempre o risco contínuo de se reduzir a uma
transmissão educativa, isto é, a doutrinas, conceitos e preceitos, mas procurar este encontro íntimo,
integral e profundo do homem com a Pessoa de Jesus Cristo.
Em busca de um conceito de evangelização
É real a dificuldade em definir «evangelização» (cf. EN 17), pois há que ter presente, todos
os elementos fundamentais para não cair em reducionismos ou concepções atrofiadas, ou enfoques
parciais. No entanto, o teólogo Rovira Belloso faz uma tentativa, ao afirmar que evangelizar
significa literalmente, anunciar uma Boa Nova, e refere-se ao oferecimento livre dessa mesma Boa
Nova de Jesus a um meio, a uma classe social, a um bairro ou país, a um sector de uma população,
cujos crentes ainda a não receberam, ou a receberam de forma insuficiente.
Na realidade, a evangelização não é uma tarefa da Igreja, mas a tarefa da Igreja. Toda a Igreja
deve estar ao serviço da Evangelização. (cf. EN 15). No coração desta está o Evangelho que é a Boa
Nova da Salvação, a proclamação de que chegou o Reino de Deus, a revelação do mistério
escondido em Deus, o anúncio da Páscoa de Cristo, a plenitude da Revelação de Deus, na história.
Evangelização, no sentido mais amplo, é o anúncio ou o testemunho da Igreja, através do que diz,
faz e é, tendo como fim anunciar e testemunhar o Evangelho do Reino. Evangelizar é, no fundo,
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levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade (cf. EN 18). É, também, uma acção, pessoal e
comunitária, de desvelamento, de criação, de promoção, no quotidiano sempre novo, do homem,
libertado por Jesus Cristo. É um anúncio por palavras e sinais.
A evangelização não se situa fora da história, mas antes, no seu interior, numa permanente
tensão; desenvolve-se na realidade social, tal como ela está estruturada; dirige-se ao homem, dentro
da sua situação económica, cultural, política e social. Mas a evangelização é, também, o processo
gerador do cristão, no interior de outros tantos processos, também eles geradores, do que é
genuinamente humano, isto é, dos processos de transformação da sociedade para a tornarem mais
humana e mais justa. Assim, a evangelização não é uma mensagem puramente intelectual, mas sim
praxis que faz mudar o sentido da vida, baseado na esperança do Ressuscitado. Na verdade, o
anúncio do Evangelho enraíza profundamente tudo o que é humano e social, pois está relacionada
com a presença de Deus no Reino, presença misericordiosa, salvífica e libertadora que afecta todos
os níveis da existência e da essência do ser humano. Para tornar efectiva a evangelização, o cristão
tem de estar atento ao itinerário pessoal, social e político dos homens numa sociedade concreta, ao
mesmo tempo, que descobre com a lucidez da fé, o desenvolvimento da obra de Deus e da acção de
Jesus.
A evangelização como processo
Neste contexto, há que ter em atenção, a necessidade de uma «primeira evangelização»
fundamental, para não saltar, no vazio, para outras etapas, tais como a catequese, formação ou
celebração. Sem esta fase inicial, perde sentido toda e qualquer acção pastoral, pois só a partir desta
etapa «propedêutica» se poderá iniciar um processo de evangelização permanente. Nesta fase
inicial, deve valorizar-se o anúncio do Kerigma, dirigido aos que não crêem, que suscita a fé, abre o
coração, leva à conversão e prepara para a adesão global e integral a Jesus Cristo (cf. CT 19-20).
Trata-se de um anúncio profético, interpelante, vivo, directo e gratuito que leva a um recentramento
absoluto do que é importante: Cristo, morto e ressuscitado em Quem se manifestou o amor de Deus.
No fundo, significa meter o Evangelho na vida e a vida no Evangelho.
Nesta linha, a evangelização supõe um processo integral que implica a intervenção de Deus
oferente, da Igreja mediadora e do sujeito receptor. A função da Igreja consiste em tornar explícito o
encontro entre Deus e o homem, conjugando o conteúdo da mensagem, com as exigências do
homem concreto, em acções mais próprias da evangelização: o anúncio da Boa Nova e o
testemunho. Estas duas acções devem suscitar a conversão e a fé, chegando a expressões como a
confissão de fé e a acção de graças – eucaristia, pois é necessário que elas se manifestem na
comunidade. Por sua vez, estas acções devem tornar-se, também, força e fonte de seguimento,
testemunho, apostolado, de modo que o evangelizado possa ser evangelizador. Na verdade, a Igreja,
antes de mais, deve apresentar evangelicamente Jesus Cristo. A evangelização requer um anúncio
que apresente Jesus Cristo, suscitando a fé, ou seja, suscitando uma resposta através da adesão e da
conversão pessoal.
Modelos de evangelização
Tendo em conta o que já se afirmou, a evangelização não é igual em todos os lugares e em
todos os momentos. Desde o início da Igreja existiram modelos de evangelização correspondentes a
diferentes situações culturais, históricas e religiosas. O Evangelho que proclama a evangelização é
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sempre o mesmo. Contudo, os destinatários da Boa Nova exigem diferentes exposições, atitudes,
métodos e formas de transmissão, consoante a realidade existencial onde estão situados. Veja-se
então, brevemente, os três modelos de evangelização mais constantes nas últimas décadas na Igreja,
muitas vezes, subsistindo concomitantemente, ou alternadamente.
De entre os modelos de evangelização, destaca-se, em primeiro lugar, a «evangelização
doutrinal». Este modelo, desenvolvido durante séculos, pelos «países da cristandade» nos «países de
missão», apoiava-se na corrente teológica do século XVI, segundo a qual a missão consistia numa
necessidade de levar a luz e salvação aos povos que se encontram em erro e perigo de serem
condenados. As missões baseavam-se no binómio salvação/condenação, com os temas próprios do
pecado, inferno, morte, etc. Reagia em defesa e conservação do «depósito da fé» em reacção às
ondas da modernidade e do iluminismo.
Outro modelo relevante é a «evangelização kerygmática». Esta, surgindo depois da Segunda
Guerra mundial, entende as missões a partir da missão da Igreja, já não sendo uma vocação de
poucos, mas de todos. No fundo, a «evangelização kerygmática» era levar a mensagem ao mundo.
Antes do Concílio, manifestaram-se duas tendências missionárias: a dos que entendiam a missão
como conversão de incrédulos e a dos que a descreviam como «plantatio ecclesiae» nos países não
cristãos. Ambas aparecerão, equilibradamente, no documento Ad Gentes.
O último modelo que se destaca é o da «evangelização libertadora». Este tipo de
evangelização caracteriza-se essencialmente por ser libertadora no mundo, que tem presente as
características culturais, a liberdade pessoal, o desenvolvimento, isto é, a libertação total com
sentido cristão. Com este modelo, realiza-se a passagem de uma Igreja preocupada em recrutar
membros a uma Igreja comunitária, mais interessada em ser luz e fermento do Reino.
No entanto, há que considerar que cada um destes modelos não possui a plena consistência
da acção evangelizadora. Por isso, tenta-se criar um modelo que possa fazer a síntese dos anteriores
e com isso, abarcar outros modelos de menor relevância que não foram apontados. Aquele que mais
peso tem é o da «evangelização missionária». Este procura levar a que a evangelização seja um sair
ao encontro e um fazer-se presença no mundo; isto é, “uma presença crente e uma presença dos
crentes no mundo e na cultura que também são seus”. Uma presença que segundo o evangelho
deverá ser «sal e luz», ser «levedura», ser «lâmpada», ser «sal», para iluminar e dar sabor
Atitudes da evangelização
Se a evangelização suscita a fé e a conversão pessoal e social, pode-se, também, afirmar, que
ela requer, necessariamente, o assumir de determinadas atitudes; isto é, quer da parte de quem
evangeliza quer da parte quem é evangelizado, exige-se, pela própria essência da evangelização, um
conjunto de atitudes diferentes e transformadoras da realidade pessoal e envolvente. De facto, a
evangelização, ao dar sentido e significado à totalidade da existência, não quer atingir somente a
dimensão afectiva, ou somente a dimensão racional da pessoa, mas circunscreve-se ao que significa
ser homem em totalidade, na mais profunda realidade de espírito incarnado, da sua história concreta,
e ao que supõe conviver socialmente na dimensão da comunhão.
Desta forma e a título de exemplo, colocar-se, hoje, em atitude de evangelização significa,
antes de mais, aceitar o desafio da secularização, entendida como projecto global de desvinculação
progressiva do profano da tutela religiosa. Aceitar, ao mesmo tempo, o desafio do pluralismo,
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percebendo que a Igreja não é uma realidade única e indiscutível, mas que há outros caminhos,
mesmo que não sejam tão definitivos e tão autênticos.
A par desta atitude de acolhimento, exige-se um esforço de concentração no essencial e de
redescoberta da identidade cristã em termos significativos e actuais. Desta forma, evangelização
deve levar a Igreja – e cada cristão – a sair de si mesma, enquanto serva da humanidade, tendendo
ao anúncio que a caracteriza. Torna-se claro que, actualmente, não terá sentido uma opção
evangelizadora de tipo restauracionista ou proselitista.
Concretizando, a evangelização requer as seguintes atitudes: solidariedade que é o
acompanhamento no caminho da vida e na partilha do destino e das responsabilidades; iniciação ao
mistério que é a capacidade de anúncio e o dever ser uma presença, partilhando, na comunhão, as
experiências de vida e de fé; construção da realidade que é sarar situações negativas e criar valores
positivos; e dar sentido à contemporaneidade, com a necessária abertura ao transcendente. Perante
estas atitudes, exige-se um critério determinante para as acções concretas que não é mais do que o
princípio evangélico. Este confere credibilidade, pois é fundamento da nova criação, iniciada na
humanidade; é modelo para as acções especificamente religiosas, ou até, acções não
especificamente religiosas; é segurança para o exercício do referido pluralismo.
Perante os fenómenos anteriormente apontados – o secularismo, o materialismo hedonista, o
cientismo positivista, a ditadura dos mass media, a difusão das seitas e o sincretismo – é necessário
recordar que a atitude do cristão diante do mundo não pode ser catastrófica, ou condenatória, mas de
discernimento, valorizando o que o mundo possui, também de positivo. No fundo, assumir o mundo
para amar o mundo. Em suma, para poder evangelizar o mundo é fundamental adoptar uma atitude
positiva perante ele, estar disposto a anunciar, com entusiasmo, o Messias como verdadeiro sentido
do homem, da história e do mundo. A evangelização supõe que a Igreja reconheça a sua própria
realidade, como evangelizada, evangelizadora e necessitada de constante evangelização.
É necessário uma auto-evangelização, a partir de dentro, uma acção de purificação, porque é
imperfeita e pecadora, manifestando-se na falta do ardor no anúncio, na incapacidade de
inculturação e diálogo com os que são evangelizados, a carência de espírito profético, o pouco
exemplo e testemunho que são, embora sabendo que são elementos essenciais da evangelização. A
qualidade da evangelização depende da verdade da própria evangelização.
Por fim, nesta acção evangelizadora, não se pode descuidar a importância da racionalidade,
sem a qual o Evangelho poderá sofrer contra golpes, isto é, se a razão do homem não for também
atingida pelo acto evangelizador, por um lado, ela não está atingir a pessoa integralmente, nem irá
alcançar o objectivo transformador que deseja, por outro, não dá ao homem um conhecimento pleno
da Revelação (cf. DV 6). Sobre este aspecto, é interessante recorrer ao exemplo dos Padres da
Igreja, onde se explica a grandeza da razão, como capacidade humana, para possibilitar esse
encontro com o «Logos». Importa também apontar que o uso da «razão» é fundamental diante dos
novos movimentos religiosos que vêem o homem reduzido ao seu sentimento, emotividade, não o
contemplando na sua integridade.
A mensagem comunicada pela evangelização
Mensagem essencial e hierarquia de verdades
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Se é verdade que a Igreja deve evangelizar «com toda a sua vida» – Palavra, Liturgia e
Caridade e outras – também é evidente que é ao ministério da Palavra que cabe a grande parte deste
dever e missão, na medida em que toda evangelização é anúncio de uma Mensagem ou anúncio dum
Evangelho, no sentido objectivo, mesmo que não seja uma acção meramente de transmissão oral.
Antes de se dirigir ao homem de hoje, é fundamental que o agente da evangelização, compreenda e
conheça quais sãos os «conteúdos» do anúncio que irá testemunhar, praticar, transmitir e servir no
mundo e na humanidade. A Evangelii Nuntiandi, como um conjunto imenso de escritos do
Magistério, em especial, a Catechesi Tradendae e o Directório Geral da Catequese, já mais
relacionados com acção catequética, referem-se especificamente ao conteúdo doutrinal da
evangelização.
A Evangelii Nuntiandi, antes de explicitar alguns dos conteúdos da evangelização e depois de
reconhecer que “na mensagem que a Igreja anuncia, há certamente muitos elementos secundários”
(EN 25), cuja apresentação depende de «circunstâncias mutáveis», refere-se ao “conteúdo essencial,
a substância viva, que não se poderia modificar nem deixar em silêncio sem desvirtuar gravemente
a própria evangelização” (EN 25). Do mesmo modo, a Catechesi Tradendae também se refere à
integridade do conteúdo, como um direito inalienável dos próprios catequizandos: “Os que se
tornam discípulos de Cristo têm o direito de receber a «palavra da fé» não mutilada, falsificada ou
diminuída, mas plena e integral, com todo o seu rigor e com todo o vigor” (CT 30). Assim, há
“elementos a nunca transcurar” (CT 29).
Por outro lado, ambos os documentos se referem também à questão da «hierarquia de
verdades» a guardar e ter em conta, tanto na evangelização como na catequese. A exortação
Evangelii Nuntiandi admite, como se referiu, a existência de elementos secundários na mensagem
(cf. EN 25); a Catechesi Tradendae refere “um ensino que se concentre no essencial sem ter a
pretensão de tratar todas as questões disputadas e sem se transformar em investigação teológica ou
em exegese científica” (CT 21). Ambas as exortações têm sequência no Directório Geral da
Catequese. Sem equívocos, este documento afirma que no anúncio da salvação há uma certa
hierarquia de verdades que a Igreja sempre reconheceu ao organizar os «símbolos», ou resumos das
verdades da fé. Esta hierarquia não quer significar que algumas verdades de fé sejam umas menos
que outras, mas sim, que algumas são base principal e iluminadora para outras. (cf. DGC 114-115).
Assim, o Directório Geral da Catequese enuncia como verdades nucleares: o mistério de
Deus, o mistério de Cristo, o mistério do Espírito Santo e o mistério da Igreja, todos contidos no
Catecismo da Igreja Católica (cf. DGC 119-130) e na Sagrada Escritura que é a fonte das fontes da
catequese (cf. DGC 95). Já a Evangelii Nuntiandi, por sua vez, dizendo que é, de facto, a verdade
“que as pessoas vêm procurar quando nós lhes anunciamos a Boa Nova” (EN 78), colocava o
núcleo essencial da mensagem, a comunicar na evangelização, na “verdade sobre Deus, verdade
sobre o homem e sobre o seu destino misterioso e verdade sobre o mundo”. (EN 78). O Sínodo dos
Bispos de 1977 deixou a seguinte «proposição» que resume o conteúdo essencial da catequese:
“Fundamento da catequese é o mistério e pessoa de Cristo, Filho de Deus que nos revela o Pai. O
mistério da Igreja, sacramento de Cristo e comunhão dos fiéis, faz parte ao mesmo tempo do
conteúdo e da experiência da catequese; como também deles faz parte a promoção humana como é
inspirada pelo Evangelho”. Embora sem se exprimir em síntese tão clara, é o mesmo conteúdo que
propõe a Exortação Catechesi Tradendae (cf. CT 29-30).
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Verdade sobre Deus, a Igreja e o homem
Verdade sobre Cristo e sobre Deus: Depois de falar sobre o cristocentrismo e o teocêntrismo
trinitário da catequização, o Directório Geral da Catequese apresenta, entre os elementos principais
da mensagem cristã, o mistério de um só Deus Trindade (cf. DGC 99) o mistério de Jesus Cristo,
Filho de Deus, primogénito de toda a criatura, centro da economia da salvação, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, salvador e redentor (cf. DGC 98). Parece importante pôr em relevo, também, a
referência que aí se faz ao problema – estimulante de uma fé mais pura e humilde – da distância e da
ausência de Deus no mundo de hoje, facto, como se viu, que a evangelização não pode ignorar (cf.
DGC, 58) e à inclusão da caridade como caminho para a revelação e o conhecimento de Deus, na
acção evangelizadora (cf. DGC 47-48). Muito menos desenvolvida e quase só em tópicos se
apresenta a «verdade sobre Jesus Cristo e sobre Deus», nas exortações apostólicas Evangelii
Nuntiandi e Catechesi Tradendae. A primeira começa por referir que evangelizar é, antes de mais,
dar testemunho de Deus revelado por Jesus Cristo, no Espírito Santo, e, particularmente, dar
testemunho do amor do Pai. De facto, Deus amou o mundo criando-o, chamando os homens à vida
eterna, revelando-se como Pai. No fundo, é este o Deus desconhecido finalmente encontrado (cf. EN
26). Jesus Cristo é o centro, a base e o ápice do dinamismo da evangelização; a sua salvação, que
está no centro da mensagem, é oferecida como dom da graça e da misericórdia de Deus, é uma
salvação transcendente e escatológica (cf. EN 27). A Catechesi Tradendae, por sua vez, ao mesmo
tempo que remete para o que a Evangelii Nuntiandi diz, no seu terceiro capítulo que se tem estado a
citar, «aponta», entre os «elementos a nunca descurar», o que do mistério de Deus se pode conhecer
naturalmente e, principalmente, o mistério do Verbo Incarnado, Filho de Deus e mediador, a sua
salvação na Páscoa, a sua pregação e os seus sinais, chamando também a atenção para a necessidade
de evitar as reduções tanto quanto ao seu mistério pessoal, como quanto à sua mensagem (cf. CT
29).
Verdade sobre a Igreja: A Evangelii Nuntiandi, depois de ter afirmado a comparabilidade da
Igreja relativamente a Cristo (cf. EN 16), apresenta, como conteúdo da evangelização, a procura do
próprio Deus através da comunhão, com o sinal visível do encontro com Deus que é a Igreja de
Jesus Cristo; comunhão que se expressa de forma maior e mais profunda nos sacramentos (cf. EN
28). A Catechesi Tradendae afirma, num único parágrafo apenas: “importa que à luz da fé, se torne
bem patente, aos olhos da inteligência e do coração, este sacramento da presença de Cristo que é o
Mistério da Igreja, assembleia de homens pecadores mas ao mesmo tempo santificados de forma a
constituírem a família de Deus, reunida pelo Senhor sob a condução daqueles que «o Espírito
Santo... estabeleceu vigilantes para pastorearem a Igreja de Deus».” (CT 29). Pelo contrário, o
Directório Geral da Catequese dedica vários números referindo-se à verdade sobre a Igreja: como
Povo de Deus, como comunhão e instituição salvífica, em especial no que se refere à vivência do
mistério da fé (cf. DGC 42-45; 77-79; 90-91; 167-170). Faz também várias referências sobre Maria,
Mãe de Deus e modelo de fé e da Igreja (cf. DGC 55, 78, 154, 196, 291) e sobre a comunhão final
com Deus. Por fim, ainda, se refere à Igreja «no dia da vinda do Senhor» (cf. DGC 115).
Verdade sobre o homem e sobre o mundo : É interessante verificar a particular atenção que a
este ponto do «conteúdo da evangelização e da catequese» dedicam os documentos do Magistério
que se têm vindo a apresentar. Este facto não deixa de ser significativo, pela importância de que se
reveste para o tema em estudo. O Directório Geral da Catequese engloba, na «verdade sobre o
homem», os temas do «homem novo», ou do «homem no Espírito», da liberdade humana e cristã,
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do pecado como obstáculo à liberdade e da história da salvação como história da libertação do
pecado, da vida moral e da perfeição da caridade (cf. DGC 163ss). Destaca-se a preocupação deste
documento para a catequese destinada ao homem de hoje, no seu pluralismo e existência complexa:
“Muitas comunidades e indivíduos singularmente considerados são chamados a viver num mundo
pluralista e secularizado, onde podem ser encontradas formas de incredulidade e de indiferença
religiosa, mas também formas vivas de pluralismo cultural e religioso; em muitas pessoas, mostrase
forte a busca de certezas e de valores, mas não faltam também formas espúrias de religião e uma
incerta adesão à fé. (…) A fé dessas pessoas é exposta a provas e ameaçada, corre o risco de se
extinguir e morrer, se não for continuamente alimentada e promovida. Torna-se indispensável uma
catequese evangelizadora, ou seja, «uma catequese cheia de linfa evangélica e servida por uma
linguagem adaptada ao tempo e às pessoas».” (DGC 193-194)
A Evangelii Nuntiandi, de forma menos desenvolvida e sistemática, afirma que a
evangelização, por um lado, “não pode deixar de comportar o anúncio profético do além, vocação
profunda e definitiva do homem” (EN 28) e, por outro lado, tem de realizar a pregação da esperança
nas promessas de Deus, do «amor de e a Deus», do amor fraterno e ainda a pregação do mistério do
mal e da busca activa do bem (cf. EN 28). Esta exortação apostólica afirma, ainda, que a
evangelização comporta uma mensagem explícita, quer sobre os direitos quer sobre os deveres de
toda a pessoa humana e, também, sobre a vida familiar; sobre a vida em comum na sociedade; a
vida internacional; a paz; a justiça e o desenvolvimento. Tem de haver uma mensagem sobremaneira
vigorosa, nos tempos actuais, ainda, sobre a libertação (cf. EN 29). Como já se abordou, a Evangelii
Nuntiandi é o primeiro grande documento a tratar do tema da libertação na evangelização (cf. EN
30-39). Parte da enumeração daquilo que põe muitos homens, de todas as partes da terra, «à margem
da vida» (cf. EN 30), passa pela relação antropológica, teológica e evangélica que a evangelização
tem com a promoção humana, que inclui o desenvolvimento e a libertação (cf. EN 31), até chegar à
questão particular da liberdade religiosa (cf. EN 39).
Por sua vez, a exortação Catechesi Tradendae, depois de declarar que é importante, na
catequese a consideração da história dos homens como «assumida por Deus, no Seu Filho» e como
prefiguradora do «mundo que há-de vir» (cf. CT 29), diz que é importante apresentar, também e sem
rodeios, as exigências da vida nova, da vida no mundo concreto, segundo a lógica das bemaventuranças.
(cf. CT 29). A seguir, a exortação sublinha a importância que devem ter na
evangelização as exigências morais e pessoais, em correspondência com o Evangelho, as atitudes
cristãs perante a vida e frente ao mundo, as realidades como a acção do homem para a libertação
integral, o empenho na busca de uma sociedade mais solidária e mais fraterna e as lutas pela justiça
e pela construção da paz (cf. CT 29). Finalmente, refere-se às consequências sociais das exigências
evangélicas e à necessidade de dar lugar ao «ensinamento social da Igreja» na evangelização e
catequese (cf. CT 29).
A salvação em Jesus Cristo e a «verdade sobre a liberdade e a libertação»
O Magistério mais recente da Igreja sobre o conteúdo da evangelização e da catequese referese
também, como se viu, explicitamente a uma «verdade sobre a liberdade e a libertação», verdade
que é necessário anunciar e aprofundar. Tendo a ver com a verdade da salvação integral, liberdade e
libertação são parte da verdade sobre Deus, sobre a Igreja e sobre o homem. De facto, a liberdade
humana e cristã é um dos elementos principais da mensagem cristã e diz respeito não só «a esta vida
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terrena», mas também «à aquisição do inestimável bem da graça e da salvação eterna», como
declara o Directório Geral da Catequese: “A comunidade dos discípulos de Jesus, a Igreja,
compartilha hoje a mesma sensibilidade que teve, então, o seu Mestre. Com profunda dor, ela volta
a sua atenção para aqueles «povos comprometidos, como bem sabemos, com toda a sua energia no
esforço e na luta por superar tudo aquilo que os condena a ficarem à margem da vida (…) Todas as
formas de pobreza «não apenas económica, mas também cultural e religiosa» preocupam a Igreja”.
(DGC 103). Assim, “o dever de anunciar a libertação, (...) de ajudar uma tal libertação, (...) de dar
testemunho em favor dela e de envidar esforços para que chegue a ser total, (...) não é alheio à
evangelização” (EN 30). E se, por um lado, a Igreja relaciona, mas não identifica, a libertação
humana com a salvação em Jesus Cristo (cf. EN 35), por outro, “a libertação que a evangelização
proclama e prepara é aquela mesma que o próprio Jesus anunciou e proporcionou aos homens pelo
seu sacrifício” (EN 39).
João Paulo II, na Catechesi Tradendae, afirmava, por sua vez, que deve haver cuidado «em
não omitir», na catequese, aquelas realidades relacionadas, especificamente, com a acção do homem
para a sua própria libertação integral. “Daí também o cuidado a ter na catequese em não omitir,
nem deixar de esclarecer como convém, num constante esforço de educação da fé, realidades como
a acção do homem para a sua libertação integral (cf. EN 30-38), o empenho na busca de uma
sociedade mais solidária e fraterna e o compromisso na luta pela justiça e pela construção da paz.”
(CT 29).
Teologia da evangelização
Como se aludiu ao início, o Concílio Vaticano II constitui um marco fundamental nesta
renovada consciência da teologia da evangelização. A sua novidade não consiste tanto nos
conteúdos – que são sempre os mesmos do depósito da fé e que a Igreja fielmente recebe e transmite
de geração em geração –, mas sim no modo como transmite e no método que utiliza para o
transmitir. Deste ponto de vista, o esforço ou o contributo do Concílio foi sobretudo hermenêutico,
duma fiel, criativa e dinâmica atenção, como ficou consagrado na Gaudium et Spes, aos «sinais dos
tempos» (cf. GS 4). Trata-se de uma hermenêutica, obviamente teológica, pois tudo se procura
entender a partir da luz de Cristo ressuscitado, o Kyrios pascal, mas que se orienta em duas
dimensões que estão intimamente relacionadas na tradição cristã, evidentemente, mas que o
Vaticano II de um modo solene assume e consagrada: o princípio eclesiológico, e o princípio
antropológico.
A compreensão que o Concílio propõe, a respeito da Igreja e a respeito do homem do mundo,
é simultaneamente a Palavra de Deus escutada em sintonia com a tradição, como uma única fonte da
teologia, e, por outro, a profunda convicção de que a fé eclesial é um dinamismo vivo que se
celebra, porque é aqui e agora, na celebração do mesmo e único mistério que tudo se afirma. No
fundo a metodologia hermenêutica do Concílio está toda elaborada e articulada nas grandes
Constituições – a Lumen Gentium e a Gaudium et Spes, e também a Sacrosanctum Concilium e Dei
Verbum. Trata-se de uma hermenêutica teológica que articula, a partir de uma perspectiva
sacramental, o mistério de Deus, o mistério de Igreja e o mistério/enigma do homem.
A importância dada na eclesiologia às Igrejas locais, onde a Igreja católica acontece, porque é
por elas que a ela se acede e se celebra, e por isso mesmo é que se pode dizer que ela precede
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ontologicamente a igreja local, mesmo se esta a precede empiricamente, pois é na Igreja local que se
nasce e cresce para a fé. Esta redescoberta da Igreja local, presidida pelo Bispo em comunhão
hierárquica com todo o Colégio apostólico e a sua cabeça visível, o romano pontífice, permite
descobrir a igualdade fundamental de todas as igrejas que são envolvidas na mesma dinâmica e na
mesma vivência e tensão do Mistério. A Igreja, no seu todo, diz-se plenamente em cada uma das
suas partes, e esta totalidade extensiva – no espaço e no tempo – e intensiva – nas vivências
existenciais do humano enquanto tal – permite redescobrir que todas as Igrejas estão na sua hora, as
do Ocidente como as do Oriente, as do Norte e as do Sul, participando todas num «sint unum», num
só coração e numa só alma, como sendo, porque o são, uma pessoa só, uma «mystica persona». (cf.
LG 13 e 23)
A «evangelização» faz parte intrínseca do mistério da Igreja, porque esta, como descreve a
Lumen Gentium, se situa na continuidade económica das «missões trinitárias» do Verbo e do
Espírito Santo, de tal modo que a missão da Igreja, o ser enviada pelo seu Senhor, coloca-a, na
totalidade hierárquica do seu ser, e na intensidade da vivência da santidade que toca cada um dos
seus membros. Isto, em continuidade com o pensamento de Deus, que ao pensar disse o seu único
«Verbum», sendo que neste pensamento já estava desde sempre, em Deus, a Igreja como esposa –
mãe e virgem fecunda – do Cordeiro imolado antes da criação do mundo. Por isso, o concílio
declara que toda a Igreja é naturalmente missionária (cf. LG 16-17).
A Igreja é, assim, naturalmente evangelizadora no sentido de ser enviada sempre para o
mundo, para o homem, para ser sinal e testemunha deste seu segredo, o de ser a comunidade
escatológica que Deus sempre sonhou. O Magistério pós-conciliar afirma este princípio, de uma
dinâmica evangelizadora constitutiva e essencial de toda a Igreja, que desde a cabeça até aos mais
simples dos seus membros, de tal modo que a evangelização se tornou um aspecto irrecusável do ser
cristão enquanto tal. A teologia da evangelização, nos seus elementos essenciais, tem, contudo,
muita dificuldade em se situar no novo contexto cultural.
O relativismo e individualismo, no campo religioso, problematiza e hostiliza a proposta da
Igreja que sabe que o seu caminho é o mesmo caminho do seu Senhor, ou seja o caminho que passa
pela lógica da cruz, pelo desapego e desprendimento de si e das coisas, como caminho de
purificação; porque o amor que salva o homem e o mundo é o amor crucificado, o amor que morre
de amor pelo amado, é a lógica do «Ecce homo» (cf. DCE 12). Neste contexto, emerge a
necessidade duma teologia que, inspirando-se nos princípios hermenêuticos do Concílio Vaticano II,
esteja atenta aos «sinais dos tempos», e lê-los, como propõe a Gaudium et Spes, à luz de Cristo, no
sentir e no coração da Igreja.
Na verdade, as grandes linhas traçadas pelo Concílio sobre a teologia da evangelização –
expostas implicitamente no primeiro capítulo – continuam actuais, porque se inspiram no sentir
profundo do coração da Igreja. De facto, na Lumen Gentium, o concílio afirma a dimensão
económica da missão da Igreja cujo modelo é a Santíssima Trindade, nas missões do Verbo e do
Espírito Santo. A missão da Igreja, ao ser enviada, afirma a sua natureza, como criação escatológica
do Verbo e do Espírito (cf. LG 9), e, portanto, tem a sua génese num acontecimento originário, o
dom do Espírito Santo, no Pentecostes, o dia inaugural da missão da Igreja, de anunciar o
Evangelho a toda a criatura (cf. LG 2). Dizendo por outras palavras, a dinâmica evangelizadora da
Igreja constitui-se segundo a lógica do testemunho, é essencialmente martirial: “Importa mais
obedecer a Deus do que aos homens!... Somos testemunhas destas coisas” (Act 5, 29-32).
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A missão da Igreja é por conseguinte uma participação na missão de Cristo, ou antes, é
através da missão da Igreja que Cristo continua a ser o Senhor e o redentor do homem. A Igreja é o
corpo de Cristo; o concílio fala de uma relação analógica entre o mistério da Igreja e o mistério da
Incarnação (cf. LG 8). Um dos princípios fundamentais da doutrina conciliar, afirmado
repetidamente, é que a Boa Nova do Evangelho vem curar, purificar e levar à perfeição os
elementos de bondade que, em virtude da ordem da criação, se encontram nas culturas, isto é, “tudo
o que há de bom no coração dos homens e nas culturas é «purificado, elevado e consumado para
glória de Deus, confusão do demónio e felicidade do homem” (AG 9; cf. LG 17). Nesta linha, o
princípio fundamental do cristianismo e da fé da Igreja, o seu segredo íntimo, de que Jesus Cristo é
o único salvador do homem (cf. DV 4), é o grande anúncio a ser feito, isto é, a proclamação do
Evangelho por excelência, de que não há outro nome pelo qual o homem possa ser salvo, senão
Jesus Cristo.
As condições sociais actuais, sobretudo dos novos meios de comunicação social, abrem à
Igreja novos horizontes para a sua acção evangelizadora. Num mundo tornado sempre mais próximo
e, paradoxalmente também, sempre mais dividido e afastado pelas novas fronteiras da
incomunicação, é necessário insistir no caminho do testemunho de vida, dos cristãos
individualmente e das comunidades, sempre mais convocadas a serem comunidades em atitude
evangelizadora. A Igreja deve aparecer como um espaço plural e aberto onde a variedade das
manifestações, pessoais e culturais, não põe em causa a unidade, antes a enriquece, à imagem do
que se dá no mistério da Santíssima Trindade, mistério de unidade e de distinção das Pessoas
divinas. Aliás, este tema foi recordado, no contexto do grande jubileu da Incarnação, pela declaração
da Congregação para a Doutrina da Fé Dominus Iesus, que se centra, toda ela, do ponto de vista
cristológico, na proclamação de Jesus Cristo como o único redentor do homem; e, do ponto de vista
eclesiológica, na proclamação de que a Igreja é sacramento de salvação e instrumento de mediação
para o encontro do homem com Deus (cf. LG 1).
É evidente que, no contexto de uma Igreja em dinâmica evangelizadora, numa compreensão
de mundo aberto e plural, assumido como um valor dos tempos actuais, coloca-se sempre de novo o
problema da identidade do ser cristão no mundo. No plano teórico, o que especifica o cristianismo é
a vivência de uma relação do discipulado: os cristãos são discípulos de Cristo, significando ser
assinalado e configurado com o Mistério de Cristo, no realismo da sua cruz, da sua paixão, da sua
morte e ressurreição. É o Espírito Santo, ao qual os documentos do magistério atribuem um papel
fundamental na dinâmica da evangelização da Igreja, que recorda, revela e conduz os discípulos e a
Igreja à Verdade, o «Kyrios». Do ponto de vista prático, o que distingue o cristão são algumas
atitudes, um estilo de vida, como ensinava já a «Carta a Diogneto», que o pode tornar a alma do
mundo.
Em conclusão, pode-se afirmar que a actual pósmodernidade, processo irrecusável e sem
retorno, pode ser um instrumento providencial para adensar, no homem, o sentimento do ser cristão,
de pensar e de sentir a partir do todo, em que todos, em comunhão, são como um só, e um só sente e
pensa como um todo, precisamente como possibilidade de sentir em tempo real com todo o homem,
em qualquer parte do mundo.
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